À Fräulein

São Paulo, Brasil, aos 05 de fevereiro de 2013.

“(…) e agora não estou mais ali
e vejo que estou aqui
escrevendo uma pequena história ilícita
de amor
fora do meu alcance
mas, talvez, compreensível para
vocês.”
Bukowski

Minha querida Fräulein,

 

A reação que tenho quando algum escrito seu cai em minhas mãos é sempre de pânico. Um pânico que gela as mãos, me faz engolir em seco e ficar uns três parágrafos um pouco perturbada.

Não foi diferente com sua carta. Li a primeira vez em um só fôlego. Na segunda, apertei o maxilar. Na terceira, meu café estava frio e suas letras todas derretidas no meu colo. Isso explica o peso do envelope.

Enquanto eu lia, por inúmeras vezes as suas letras, eu só lia você. Suas palavras em carmesim, seus parágrafos rápidos que me tiravam o ar foram me entregando você como ré, puramente. Aquela carta era tanto Fräulein, que quase te ouvi falar.

Nessa extração de você, torcendo os papéis em líquido rubro, me transportei ao dia em que você me convidou para visitar seu gabinete. Lembro-me até hoje que cheguei na ponta dos pés com medo de romper o fluxo de tudo o que era você ali. Com medo de tropeçar no seu tapete vermelho e bagunçar suas canetas e seus dicionários.

Passei os olhos com cuidado sobre os móveis de ébano e sobre aquele divã. Havia Tchaikovsky. Ah, minha querida, eu sorri pensando naquela previsibilidade. Você nunca seria Chopin. Eu nem me assustei.

Mas, em seu gabinete, o que me saltava não era o aconchego das cores fortes, mas o clima de alma derramada ali. O cheiro de recomeço, de renovação. Como se a cura fizesse um redemoinho no centro da sala, espalhando alguns papéis. Por isso, Fräulein, 1812 tocava.

Por isso, exatamente por isso, esse seu desconforto na carta me tirou o ar, mas não me assustou. Pois suas palavras se reviram em você como um filho monstro querendo ser expulso, posto ao mundo. Você, minha estimada, é conflito. É aquela que nasce e gera na dor. Você é sangue, quase de fogo, é vermelha em tons que gritam na sua pele branca.

Se você é tão quente assim, haverá de fazer silêncio aquele que em seu corpo habita? Haverá de não ser inquieta essa sua alma? Pois te digo que se sua voz se calasse e suas palavras fossem mortas, você também haveria de morrer, Fräulein.

Porque além do rubro, você também é vitral. É transparente como essa sua íris azul celeste. É cristal que derrama a alma para fora, mas só derrama se irromper rasgando, atravessando os estilhaços do plasma endurecido e revelador.

Sua voz não morreu, isso me disse a sua carta. Ela está em clínica. Porque você, minha querida, como é tiro de canhões, resolveu se atirar em outro lugar, para viver e morrer de amor,  filosofar e ver das ciências em outro país, outro continente, na Velha Senhora.

E, sua voz apenas está tentando traduzir o que a sua alma agora quer sentir. Sua voz está aprendendo a amar em outro idioma, aprendendo a reconhecer os novos elementos que fazem cócegas na sua alma, mas não sabe traduzir.

Dicionários não aceitam caneta, Fräulein, são folhas de abrir e fechar. Dê um tempo para que o seu sentimento aprenda a bailar no mesmo ritmo de sua boca. Não sei você, mas amo melhor no meu idioma. Foi nele que aprendi a traduzir o latejo da minha alma e, foi nele que já quis morrer e nele também ressurgi.

A voz e as palavras de Fräulein nasceram quando ainda externo e alma eram uma coisa só. Deixe sua voz aprender a dançar em sincronia novamente, que o samba não vai morrer. Deixe a sua voz amar tons de marrom e cinza, e fazer desenhos com o lençol de neve no capô do carro, que todo esse tropical sempre vai te esperar de volta.

Sua voz, portanto, minha querida, quer colo e não velório. No entanto, sua alma quer escancaro, atrevimento, deflagre e invasão. Sua alma não respeita a tradução, ela quer sentir, sentir e sentir.

Quanto à visita, Fräulein, fale-me melhor dele em outra oportunidade. Quando tiver percorrido mais páginas do dicionário, quando entender melhor os elementos que o separam tanto de outros corpos latinos.

Quanto a mim, eu te entendo. Eu sei como é esperar alguém na sala e, por causa do som de uma risada irresistivelmente gostosa, entregar as chaves do quarto para ele emoldurar o sorriso ali, na parede do meio. Mas, falamos sobre isso mais tarde.

Tomara que o berlinense tenha deixado uma música doce pra você, como souvenir de sua peregrinação. E, que tenha levado de você as notas mais doces e o tom da estrofe mais forte.

Novamente lhe asseguro: sua voz não lhe falta. Elas roubaram o meu sossego por dias e sapatearam sobre minha caderneta; então, selo esta carta e as coloco de volta, uma a uma, no envelope. Guardei comigo apenas a rouquidão e o seu esbaforido jeito de contar histórias. O restante é seu, todo seu, para que voltem sempre para mim, para minha mais deliciosa perturbação.

Um abraço cheio de saudades de sua amiga que sempre vai se ensurdecer com suas palavras,

miss demoiselle

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Em resposta à pertrubadora carta: https://letraseflores.wordpress.com/carta-de-fraulein-a-miss

Dessa mão: http://frauleincatharina.blogspot.com.br/

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About Tâmara Abdulhamid

palestina, engenheira e blogueira… …mas, é muito injusto uma vida inteira para viver e me definir por linhas. Por isso, espalho pedaços de mim em vocês, nas linhas, naquilo que invento e chamo de amor. Por isso existe o café. Para que você entre, me abrace, se aconchegue, converse e deixe o amor acontecer. De qualquer jeito, do jeito que couber, do jeito que for.

4 respostas para ‘À Fräulein

  1. É curioso que você tenha reparado minha alma Tchaikovskiana. Ele é meu compositor preferido e, de fato, nunca me identifiquei com outro se não com ele (talvez com Beethoven também, mas penso que seja mais pela empatia germânica que pela pessoa). Suas palavras me chegam como um abraço reconfortante. Vejo que estou diante não de uma limitação, mas de uma abrangência: tenho a oportunidade de ser Fräulein e amar como Fräulein não só em Português, mas em Alemão, em Tcheco, em Inglês! Isso é um presente divino, e só agora percebo, graças a você. Serei eu agora, então, Fräulein Kafka, Fräulein Goethe, Fräulein Hemingway? Vejamos…
    Já sinto a necessidade de te escrever novamente.

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