A Gaveta

Para pingos de Flores,
recomendo (muito!) esta música, este texto e uns goles de café quente…

 

 TODA MANHÃ, ELA PRECISA DE um empurrão. Daqueles que a fazem estar pronta em quinze minutos, de banho tomado, cabelo domado e café passado. Embora o espelho denuncie o alvoroço de seus fios, e aquele bafo de passarinho morto, fica sentada na cama por longos minutos, deixando o dia correr lá fora. Decide que hoje não será atônita, apressada, responsável. Puxa sua gavetinha de cabeçeira e se assusta com a limpeza. Até solta um sorriso tímido, de lado. Sabe que está satisfeita. Aliás, é sua melhor época. Sente-se preenchida, alimentada, feliz – aquecida por dentro. Houve um tempo triste, um tempo quase cruel e impiedoso que encheu aquela mesma gaveta. É claro que se lembrava – como se fosse hoje – da época em que a gaveta mal abria por estar abarrotada de coisas. Coisas longes, daquele ano passado, do retrasado…Daqueles meses doídos.  Era só abrir que pulavam – algumas mentirinhas, tantas historinhas. Era uma gaveta cheia e colorida, com alguns lindos, com alguns bilhetes e mensagens, com tantas expectativas e dobraduras. E aquele cheiro gostoso daquele perfume que usou para deixar um tanto de si naquele eterno, sem saber que havia nele mais do que pensava. Sem saber que ali havia era muito de si. A gavetinha abarrotada também tinha prazos esgotados, contas pagas e projetos empoeirados. Aquelas lembranças dos dias em que foi difícil acordar. Dos dias difíceis de enfrentar. E, claro, os sonhos manipulados, que já não eram aqueles sonhos que queria, mas sim o sonho de ontem que esperava acordar em um amanhã que nunca chegou.

Engraçado aquela gavetinha vazia e limpa – outrora tão cheia – tê-la trazido aqui! Por vezes tentou despejá-la, mandar à reciclagem (para não mandar à outras). Sabia não poder. A gaveta era ela. E cada papelzinho dobrado, cada projeto sem conclusão, cada vez que observava quem lhe tirava a paz fazia parte dela. E determinou quem é hoje.

Engraçado aquela gavetinha vazia. Ontem doía tanto sua desorganização, por saber faltar aquele. Hoje já se tornou gostoso lembrar do ontem que doía, tornou-se um doce bom espiar de longe aquele metro e tanto ser seu e tentar tanto fazê-la feliz. E ela está. Feliz.

(…)Ela não entende muito bem o que anda acontecendo. O fato é que as coisas continuam a caminhar sem sua autorização, então ela percebe que nada depende dela, e que talvez isso seja bom…Que pelo menos uma vez em sua vida viverá desprogramada, irresponsável, inconseqüente, divertida.

O problema era o relógio malvado que não esperava. Corria como os pisantes lá de fora. O dia parecia gritar por ela – Produção! – e fingiu ignorar, por tempo, o tempo. Olhou no espelho. Precisava de um banho para desamassar o rosto. Mas, além do amassado, o espelho também mostrava naquele rosto pouco maduro os anos que a trouxeram até aqui. Anos bons, carregados com uma docilidade boa e alguma dor. E, havia algo que o banho não tiraria…o que está vivendo hoje – seus pingos de felicidade constante…e de gaveta arrumada!

 

This entry was posted in Blogroll by Tâmara Abdulhamid. Bookmark the permalink.

About Tâmara Abdulhamid

palestina, engenheira e blogueira… …mas, é muito injusto uma vida inteira para viver e me definir por linhas. Por isso, espalho pedaços de mim em vocês, nas linhas, naquilo que invento e chamo de amor. Por isso existe o café. Para que você entre, me abrace, se aconchegue, converse e deixe o amor acontecer. De qualquer jeito, do jeito que couber, do jeito que for.

22 respostas para ‘A Gaveta

  1. João Romova,

    Sim! Caixola é termo filho de Rubem Alves.

    Então você precisa de um toque de bagunça e desordem para sentir-se arrumado? Aquele tom de desorganização incita a literatura? Talvez isso funcione para mim, quando eu escrevo mais é justamente sobre as minhas bagunças e as bagunças que vejo…acaba sendo uma inspiração, a velha desorganização! 🙂

    Grande abraço!

  2. Tenho dificuldades com minhas gavetas arrumadas e com minha mesa arrumada.

    Minha (fraca e medíocre) literatura nasce disso… Se ficar tudo arrumadinho, catalogado, não brota nada na “caxola”!

    (Quem disse isso não foi R. Alves?)

  3. Pelo contrário…disse a meu respeito…Por vezes me pego complementando o texto. Aliás, para os meus textos eu até prefiro que complemente pois o leitor quando lê ele pode ter um outro ponto de vista que não foi abordado no texto, daí se ele complementa, enriquece o texto! Você já fez isso nos meus textos e eu acho bom. Tá certo que tem alguns comentários petulantes demais :), mas mesmo assim, se eu não quisesse ouvir tudo, então que deletasse o blog, não é mesmo? Mas, me refiro mesmo a mim. Acho que as vezes meus comentários ficam meio ‘donos da verdade’. E acho isso irritante, porque não sou assim! Então, fechado! Vamos adotar política de sinceridade quanto aos textos e também aos comentários,ok? 😉

    Grande abraço!!

  4. Poxa…. vc odeia comentários que complementam o texto?! Eu comento, ou muitas vezes, complemento o seu….. vc deve se estafar com os meus comments então….
    Me desculpe, Tâm!
    Façamos um trato de sinceridade quanto aos comentários um do outro. Se não gostar dos meus diga tb! Ok?!
    Abraço forte e boa semana!

  5. Jourdan,

    Devo dizer que adorei o subtítulo! haha! 🙂
    Obrigada pelo elogio, e sei que este vindo de você é de alto valor pelo culto que é.

    Jogar fora ou reciclar seriam nossos momentos de fuga?Pode ser que sim ou que não. Talvez mesmo quando fugimos, ao voltarmos, a gaveta está lá – intacta e bagunçada. Mas, seria covarde de nós, mandarmos a gaveta a qualquer lugar…

    Conversar sobre Quino? Ou sobre devaneios suntuosos? hahaha 😉 Em breve estarei online!

    Grande abraço,querido!

  6. The drawer of Miss Demoiselle… Rs!

    Belo texto!

    Seria muito fácil [e covarde] apenas reciclar ou jogar fora o conteúdo das nossas gavetas… Extremamente fácil…

    Precisamos conversar!

    Beijo!

  7. Pura verdade,Gláucia!

    Como é interessante ver que existem pedaços nossos dentro do nosso ambiente…nosso quarto, nossas gavetas, nossas cores prediletas que forram a cama, nossas flores que gostamos…

    Grande beijo!!

  8. Eric,

    Realmente ficamos sem saber se é por falta de tempo ou não… Na verdade, acho que o tempo contribui sim, mas principalmente a nossa falta de prioridades… Deveríamos priorizar não o trabalho louco que fazemos, mesmo ele sendo importante, mas sim nossa saúde emocional, nosso tempo para nós mesmos. Sem isso, impossível render bem…!

    Obrigada por ter lido o texto!

    Grande abraço!

  9. É Tâmara, às vezes, na correria do dia a dia, esquecemos até de abrir esta gaveta, que como menciona, fica toda desarrumada. Seria muito bom, se todos pudessem ter um tempinho para refletir sobre suas lembranças… como foi o dia… o que fazer para melhorar… Será que é mesmo por falta de tempo? Que bom seria se pudermos manter esta gaveta sempre arrumada…
    Adorei seu texto!
    Eric.

  10. Obviamente, Thiago!
    O passado nos trouxe até aqui…somos fragmentos encaixados perfeitamente bem…!
    O problema é que as pessoas vivem demais do passado, não enterram suas dores antigas, não encerram e resolvem as etapas…e consequentemente, não vivem o presente, e o futuro será sempre dependente do que nos rege!

    Obrigada pela visita!
    Abraço!

  11. Oras, e quem não tem a boa e velha gavetinha?!
    Será tolice rejeitar o passado querendo se auto-afirmar como indene a ele. Belchior diz tudo com “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”.
    =)
    Abraço apertado!

  12. Temos mais é que dar sorrisos mesmo…Se não nos entendem é porque estamos fora do lugar-comum. Quando recebermos aplausos demais, de todos, isso seria um motivo para começarmos a nos preocupar…Não vivemos para agradar a ninguém, senão a nós mesmos e ao Senhor.

    Beijo…
    baba, baby! 😀

  13. hehehe… È, talvez essa seja minha grande facilidade… Amo tudo isso! Crescendo? Que bom, fica mais visível quando me pego impressionada com algumas atitudes, fico rindo de mim mesma. Pra ficar mais provado, olha, que cantava e dançava Kely Key, acho que escreve assim, agora ama jazz, apaixonda por palestras, ama ler livros e escrever sua meta de cada dia… Amo ser mais eu! Mesmo quando as pessoas começam a rir, e ficar impressionados com meu estilo de vida, simplismente dou um sorriso, e fico feliz por ser eu mesma!
    A gaveta ainda tem coisa demais, mas assim que se descobre a grande mulher…
    Abraço

  14. Taty, talvez seu maior tesouro seja a facilidade, o desejo e a humildade em aprender. Qualquer coisa que eu tenha dito só pode fazer efeito se você for grande. Grande para ser pequena quando precisar aprender, e grande para ser grande quando aplicar e viver o que aprendeu.
    Leve seu caderninho aonde você for e anote as frases que quiser. Guarde na sua gaveta tudo o que precisa para crescer – seus escritores favoritos, as nossas cartinhas bobas, os pedaços de gente que você vai absrovendo. Dou-lhe alguns anos e você estará mais moça, mais bonita, mais você. Pois, durante o caminho, sua gaveta terá se esvaziado dos fragmentos e o que terá sobrado? Você.

    Cheguei a conclusão de que talvez o problema não esteja em mim ou em você, mas sim no fato de que talvez não dê pra se colocar o ‘e-mundo’ em prosa…Acho que existem coisas que são poesia, e não se proseia a poesia que nasceu para ser poeta.

    Um grande beijo.
    Crescendo mocinha… 😉

  15. Hum… ” Sem lorotas de certim!” Belo texto Tâm! O engraçado é que hoje passei a manhã, a tarde enteira arrumando as gavetas… hehehe, estranho. Mas deu pra tirar toda poeira, passar cheirinho de lavanda, arrumar os livros, classificar o que vou ler, guardar as cartas velhas, os bilheitnhos doídos… E agora, é como se eu entrasse no quarto e nao reconhecê-se minhas coisas, como não querer mais sair do paraíso da Taty, e começar as novas espectativas do sorriso, de ver que esta do geito que sou… Além de seu texto, me lembrar uma peça, que brevemente irei fazer ( e tô torcendo, pra vc ta em goiania), me faz lembrar a frase que vc me disse e que nunca vou esquecer : ” Se não tiver momentos ruins, nao saberemos reconhecer momentos bons!” E agora, pra ficar mais provada sua “teoria das Gavetas”, se não tivesse aquele momento do qual me falou a frase, nao estaria tão bem, quanto hoje!
    Abraço, ainda serviu de ânimo pra prosa!

  16. É, Svety…
    Colocamos nossas lembranças na gaveta também. E seguimos em frente. Sempre rio e me divirto sozinha quando me lembro das nossas “sérias idiotices”… Muito bom cada minuto daquele!
    Logo responderei ao email!

    Grande beijo.

  17. Muito bom o texto Tâm.. me fez lembrar de tantos momentos alegres que tivemos.. desesperos, falta do que fazer e correria.. sinto falta de cada minutinho que tinha com vc amiga e qdo lembro deles.. aaahhh não vejo a hora de poder relembrá-los… Vê se responde o e-mail que te mandei a quase 10 dias.. preciso saber noticias suas.. não some não plissss hehehe bjãoo

  18. Olá Gláucia!
    As gavetas somos nós não é mesmo? Cheios de recordações, de lembranças, de saudades, de amores, de vontades, de tentativas, de arrependimentos, de escolhas, de fugas, de buscas… Um dia a gente precisa fazer uma faxina, tirar o que é velho, limpar a poeira, deixar guardado o que é importante e abrir espaço para novas pessoas, novas experiências, novas coisas.

    Infelizmente, engavetamos coisas que não gostamos também..e isso ocupa espaço grande, desnecessário!

    Também estou com saudades!
    Foi bom tê-la visto hoje!
    Grande beijo!

  19. Olá
    Gavetas trazem recordações…
    Usamos todos os dias…
    Tudo que gostamos, engavetamos…
    Estou com saudades!!!
    Beijos

  20. Que deliícia , gaveta arrumada , vida salpicada de momentos felizes ,marcas de dias seguidos , o cotidiano sereno …

    Adorei .
    Beijo ,
    Amalina

Deixar mensagem para Glaucia Cancelar resposta